Entrevista com Kleber Mendonça Filho
- Humberto Moureira
- 19 de mai. de 2024
- 7 min de leitura

O documentário longa-metragem Retratos Fantasmas foi exibido em sessão especial no Festival de Cannes. Super elogiado pela crítica e com todas as sessões lotadas, o trabalho tem planejamento de entrar em cartaz nos cinema em meados de agosto.
O novo filme de Mendonça é um ode ao cinema. Dividido em três anos, a produção mostra o bairro e a casa, onde o diretor fez filme O Som ao Redor (2012), os letreiros de cinema e como através do tempo e com eles integram a vida no Recife e o declínio e fechamento das salas de cinemas de rua em Recife. É um filme biográfico, emocional, cheio de memórias e com uma montagem extremamente inteligente e assim, sensível.
O longa foi Foi muito bem recebido pelo público no festival francês. Na oportunidade dessa estreia conversamos com diretor pernambucano e também coordenador de Cinema no Instituto Moreira Salles (IMS) sobre o seu mais novo trabalho Retratos Fantasmas e os rumos do audiovisual brasileiro.
HM: Qual é pergunta que mais te fazem, Kleber?
Kleber Mendonça Filho: Bom, a cada momento da vida tem uma pergunta. Depois que um filme tem pergunta específicas, mas penso que é 'o que você está tramando?' Você acabou de terminar um filme, mas tem sempre mais um desejo das pessoas ter um mais novo filme. Por exemplo, eu acabei de terminar Retratos Fantasmas, anos fazendo esse filme e nos últimos dois meses foi de bastante trabalho e estou bastante feliz. Aí, vem a pergunta 'qual é o próximo filme?'. Poxa! Deixa eu ter o meu momento com esse filme. Mas eu não fico com raiva, não. Eu acho bonito.
HM: Você esteve quatro vezes em Cannes com seus filmes e esteve no júri. Ainda dá frio na barriga ou síndrome de impostor?
KMF: Não, não tem para ser sincero. Eu fiquei pensando um pouquinho 'ai, ai, esse filme', mas depois já fiquei animado de novo. E estou bem feliz com o filme. Sabe, você fica esperando aqueles carros pretos do festival no hotel e na frente tem um adesivo escrito 'Retratos Fantasmas' e aí você tem a sensação de estar entrando numa montanha russa, mas não tem crise. É ótimo… (risos), mas não tenho síndrome de impostor, não.
HM:No filme você comenta que as pessoas te perguntam se a locação de O Som ao Redor tem direção de arte e às vezes você responde que sim, outras vezes você diz que não. Por quê?
KMF: (Risos) Às vezes, é tão complicado explicar que o Brasil é absurdo daquele jeito… (risos) Talvez, eu tenha exagerado um pouco. Perguntam se 'as paredes são assim mesmo?' Sim, são assim mesmo. 'Com ferro?' Sim, com ferro. 'As portas também tem grade?'. Sim, tem grade. É meio cansativo de explicar, mas não é direção de arte. Tudo que está ali é a vizinha. É assim.
HM: O tempo assume quase a função de um personagem no seu filme. Penso que tem material da década de 90…
KMF: Sim, o meu material tem desde o final da década de 80 até agora. São trinta e quatro anos de material.
HM: Como foi preparar esse material? Hoje em dia com digitalização em alguns anos as pessoas não tem mais material algum. Claro, que você é diretor, trabalha com cinema…
KMF: Sim, esse é um problema, né? O VHS é muito robusto. Já o super 8 não é. Tem várias fitas que fazendo esse filme, eu descobri que perdi. São fitas de 95, 96 e 97, mas os VHS estão todos em perfeito estado e em 2002 eu transcrevi para para mini Dv já pensando em preservação. Então, já tinha muita coisa guardada para o futuro mais próximo. Eu tive o prazer de fazer todas as digitalizações para o filme e isso me aproximou do material. Eu anotava e já separava os materiais que achava que poderia usar. Para mim foi melhor eu fazer do ter um assistente fazendo isso. Por duas questões. Ele ou ela vai acessar esse material e reportar para mim o que foi acessado e isso é ruim para mim por que ele ou ela não iria viajar em materiais que eu viajaria. Outra questão é de ter muito material pessoal. Eu não queria um pessoa esbarrando nesse material que eu nem sei o tinha. Poderia ter, sei lá, festas estranhas…(risos)
HM: Segredos de família…
KMF: É. E foi muito bom rever esse material e a mesma coisa com fotografias. Manusear esse material foi muito importante.
HM: De onde vem o nome "Retratos Fantasmas"?
KMF: Veio de brainstorm com amigos e acabou o sendo Thiago Gallego que trabalha comigo no IMS que sugeriu. Meu filho de nove anos sugeriu "filmes de fantasmas". Achei interessante e fiquei pensando nisso e foi evoluindo. Antes foi "cinemas do centro do Recife". Também tivemos "O filme começa na calçada". Foram uma série de tentativas que não deram certo. Estou bem feliz com "Retratos fantasmas" e em inglês e francês gosto muito também.
HM:Quando você começou a pensar nesse filme?
KMF: A resposta correta seria quando eu estava na faculdade porque eu fiz dois documentários no meu projeto de final de curso. Eu fiz " Um homem de projeção", sobre o seu Alexandre [ que está em Retratos Fantasmas] e "Casa de Imagens", sobre os cinemas que já tinham fechado ou que estavam fechando, já as ruínas. Sempre pensei em um dia usar esse material. Principalmente o do [cinema] Arte Palácio. Eu tive um acesso incrível ao Arte Palácio e e sempre achei que poderia reutilizar o material de alguma maneira, mas só há 10 anos atrás que comecei a realmente esquentar a ideia de trabalhar nesse filme. Teve um tempo de erros e acertos e perceber o que estava ruim e o que estava bom. Quando nos preparamos para sair de onde morávamos, da casa da minha família e irmos para uma outra casa, eu senti o peso da despedida e comecei a entender que aquele lugar foi muito registrado e foi aí que ele se tornou a primeira parte do filme porque o sentimento da minha casa era o mesmo sentimento das salas de cinema. Eu não morava nas salas de cinema, mas eu morava nas salas de cinema. Me despedi de uma por uma. Todo o trabalho feito durante muito tempo. Bacurau aconteceu, a pandemia aconteceu, surgiu o Agentes Secretos que influenciou esse filme e que influenciou o Agentes Secretos que é o próximo filme.
HM: Já que você falou de próximo filme, gostaria de fazer um exercício de "futurologia". De 2015 até 2019 tínhamos um média de 40 filmes em festivais de cinema só no primeiro trimestre do ano. Esse número caiu drasticamente devido ao declínio de produção em 2016, seguido do sucateamento da Ancine e extinção do Ministério da Cultura em 2019. Para onde estamos indo agora?
KMF: Eu penso que com o novo governo o Brasil está retomando uma visão democrática sobre a sociedade e parte disso é a cultura ser tratada como uma área de interesse nacional. Eu vejo que as questões da cultura no Brasil estão sendo reconstruídas. Não, não reconstruídas, mas reconectadas do lugar que ela jamais deveriam ter saído. Existe essa percepção de que o Temer e Bolsonaro destruíram a cultura. Eu penso que eles desligaram a cultura. É claro, que destruíram uma noção de civilidade do país, o que é muito grave. Mas eles não conseguiram passar nada no Congresso e nem tem uma lei proibindo. Não, eles não fizeram isso. Eles sabotaram a cultura e isso já é muito grave. É um crime. Agora ela está sendo reconectada Ela volta a funcionar, o que é muito bom. Daqui pra frente, eu quero ver um audiovisual cada vez mais diverso, cada vez mais vindo de lugares que eu não tinha visto antes, filmes lindos e bons sendo feitos. E a gente estava começando a ver isso em 2019 quando a produção foi interrompida. Eu acho que o cinema brasileiro precisa ser mais diverso em tudo. Em perfil social, em raça, em tema, maluquices, experimento, gêneros, ficção cientifica, horror realismo e documentário porque tem espaço para todo mundo e a tecnologia está muito presente para todos nós fazermos coisas. Esse filme foi com todo tipo de tecnologia disponível nos últimos 100 anos. Para mim isso é muito instigante. A gente pode ser capaz de fazer filmes grandes e filmes pequenos e não temos que compará-los porque são distintos.
HM: Como a gente atinge esses lugares? A gente precisa de cotas?
KMF: Cotas são importantes, claro. Eu fiz o "Som ao redor" por causa de cota. Todo mundo sabia que o Sudeste pegava todo o dinheiro de produção de longa-metragem. E no segundo governo Lula instituiu que teria uma cota regional e o "Som ao Redor" ganhou ganhou porque teria que dar prêmio para dois projetos do Nordeste. Cotas são muito importantes, mas como tudo precisa ser pesquisado e é delicado. Tenho visto cada vez mais filmes de pessoas que não teriam oportunidade muitos anos atrás por causa de cotas e por causa do acesso natural à tecnologia. É uma tendência natural de isso se multiplicar. O que não garante que nós teremos bons filmes. Isso aumenta a possibilidade de termos bons filmes porque o bom filme, a obra artística não pode ser criada em laboratório. Bom, você pode tentar, né? Mas não acho que obrigatoriamente vai dar um bom resultado. O bom filme vem de dores, neuroses, preocupações, raiva e ardor. Daí vem uma boa obra: um texto, uma música, um filme ou uma peça de teatro. E se a gente der cada vez mais oportunidade a quem não tem tido, aumentamos as chances de encontramos bons filmes, mas de fato, é complexo. Eu faço a programação de uma sala e estou sempre à procura de produções novas. E às vezes, eu acho. E abro espaço para coisas que são novas ou que que interpreto como novas , mas precisamos ter um apoio constante para novas obras e essa politica pra mim é muito inteligente, mas é difícil escolher novos nomes de homens e mulheres e escolher os projetos. É um trabalho de muita responsabilidade.
HM: Kleber, seus filmes tem sido sucesso nos festivais de cinema. Você é um diretor que tem medo do streaming?
KMF: Não, de maneira alguma (risos). Eu gosto de acrescentar coisas. O problema é quando você começa a subtrair. O capitalismo prega muito a subtração: para uma coisa nova entrar tem que tirar algo que já existia, mas o streaming é mais um espaço que a gente tem. Eu acho ótimo que o "Som ao Redor"ou "Aquarius" pode ser visto na Netflix num domingo à tarde, por exemplo. Mas esses filmes tiveram uma vida completa na sala de cinema, em Blu-Ray, DVD, no Canal Brasil, no Telecine, passou na Suíça, no Canadá, na Inglaterra e está na Netflix. Eu não sei se eu queria que meu filme fosse direto para a Netflix. Não sei, talvez. Não aconteceu ainda.


